sábado, 16 de outubro de 2010

A chave de Esther.

Julian dormia no telhado do velho casarão. Era inicio da tarde, pouco depois do almoço, e por isso mesmo Julian não fez muita cerimônia para tirar uma soneca.
Havia chovido muito há algumas semanas, mas o mago Audus só pôde conjurar um feitiço para desviar a chuva do casarão tarde demais, quando a água já descia pelas escadas para o térreo em cascatas. A mobília e boa parte dos papiros e livros da biblioteca, antiqüíssimos e inestimáveis na maioria, se molharam. Julian foi incumbido pelo mago a secá-los cuidadosamente no porão, estendendo-os num varalzinho perto da antiga caldeira à lenha.


_ Mas mestre, não seria bem mais fácil e rápido se o senhor conjurasse um feitiço quente para secar todos estes livros de uma vez só? Puft ?!? Eu poderia estar sendo bem mais útil para o senhor fazendo coisas mais importantes.
_Não, Julian, não há nada mais importante para fazeres agora que secar meus preciosos livros. Além disso, um aprendiz de feitiçaria atento deveria saber, após pesar todos os prós e contras, que se usares feitiço quente deixaria todos estes livros antigos amarelados e amrrotados , bons apenas para uma boa fogueira.
Todo este trabalho de secagem durou dois dias e Julian ficou exausto.
No entanto aqueles dias no porão quente e abafado eram agora mais uma lembrança ruim que teria de amargar desses anos em que viveria com Audus, o mago de Kirint.
Estava exausto. Talvez por isso não se importou muito com a possibilidade de que o mestre estivesse espionando pela bola de cristal Arnun como estava fazendo o trabalho no telhado.
Julian fora incumbido pelo mestre Audus a selar com resina de Bitara, recolhida penosamente por ele mesmo na mata Ocidental, as frestas, rachaduras e qualquer orifício do telhado que pudesse dar vazão à água.
Como a casa devia ser bem mais velha que o próprio Audus, ele dizia ter quatrocentos e setenta e quatro anos, Julian teve que praticamente refazer todo o telhado. E havia trabalho para mais algumas semanas, meses talvez.
Uma voz forte e retumbante encheu a mente de Julian mesmo durante o sono, fazendo com que ele quase caísse do telhado. A sensação fora que recebera um cascudo.
_Julian, seu moleque preguiçoso, acorde!
_Desculpe... mestre... Eu... eu....
_É por isso que o serviço que fazes demora tanto e tão mal é feito, dormes mais que um ricah velho e gordo.
_Desculpe, mestre. Não acontecerá de novo. Asseguro-te que...
_Não. Não agora. Preciso de ti na biblioteca.
Julian descera tão rápido que quase pareceu que ele também tinha, como o mestre Audus parecia ter, o Dom da ubiqüidade, que é o poder de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Coisa rara até mesmo entre feiticeiros.
_Julian, depois penso numa correção adequada para a nada digna situação em que te encontrei agora há pouco, disse o velho Audus quando Julian, arfante, se colocou à sua disposição.
_Sim mestre, sobre isso...
_Basta! Sou necessário em outro lugar agora. Vou ler os astros para o Rei Pejace de Elien. E como não bastasse o contratempo, fez questão que fosse pessoalmente. Desta forma vou precisar que você continue com este feitiço que comecei.
_Claro mestre pode deixar...
_É claro, não é nada que você possa estragar tolo Julian. Só preciso que você adicione neste caldeirão essência de erva Azul toda vez que a mistura secar, a cada quarenta minutos mais ou menos. E apenas isso, está me entendendo?!? Só isso, frisou o mago.
O mestre Audus tinha uma maneira de falar bem convincente, era como se ele sempre estivesse a um passo de pulverizar Julian, que é claro, ficava apavorado com esta possibilidade.
Audus mostrou onde estavam os recepientes com essência de erva azul e antes que Julian pudesse falar qualquer coisa sumira numa fumaça azul e quente.
Julian ainda estava no estágio “escravo particular” do aprendizado de feitiçaria. Não fazia nada que nem remotamente lembrava a magia. Apenas lavar, cozinhar, limpar, consertar. O pouco que aprendeu foi lendo livros e anotações nas madrugadas enquanto Audus dormia.
Julian aprendeu a criar fogo em qualquer lugar, até flutuando no ar.
Aprendeu também a transmutar pequenos objetos em cristal, a ler pensamentos de pessoas mais fracas e invocar diabretes que o serviam, mas estes faziam muito mais confusão do que ajudavam. Enfim, Julian achava que, com algum esforço e cuidado, podia aprender mais magia sozinho do que o velho Audus estava disposto a ensina-lo até que se cansasse de seus serviços.
Depois de colocar todo o elixir de erva azul no caldeirão que borbulhava, o que lhe garantiria umas duas horas livre, Julian foi à estante particular do mago e começou a procurar.
Diferente da biblioteca que tivera que secar na caldeira, que tratava de amenidades, os livros particulares do Mago Audus falavam especificamente de magia. O que fazer, como fazer, e o que se precisa saber.
Mas Julian não tinha muito tempo então não foi um livro o que escolheu, mas uma folha solta que caiu das paginas de um livro mal escondido. Era um feitiço simples, mas que criava uma chave atemporal extremamente poderosa. Uma chave que podia abrir passagens de um lugar para outro, por mais distantes que eles fossem num instante. De forma que o possuidor de tal magia poderia atravessar os oceanos tão rapidamente quanto se mudava de sala. Esse feitiço se chamava “A chave de Ester” e era personificado numa chave. Chave igual a que o mago Audus carregava no pescoço.
Será que é assim que ele consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo? Que ele consegue sincronizar sua mente nos picos brancos com os anciões e logo depois estar nas profundezas de Srien colhendo o sumo da lótus negra?
A mente de Julian ficou extasiada só de pensar nas possibilidades que teria possuindo tal poder. Num dia poderia fazer coisas que demoraria anos se fizesse usando os meios comuns de transporte. Teria uma evolução rápida e meteórica no campo da magia e do conhecimento. Em algum tempo poderia até sobrepujar seu mestre, o poderoso mago Audus da floresta de Bitara.
Julian levara um susto quando voltou a si. Quanto tempo perdera sonhando acordado? Precisava correr, precisa tentar o encantamento a qualquer custo.
Correu pelo casarão como um raio, pegando todos os elementos que precisava. Não se importou com a bagunça, arrumaria tudo depois. Julian ainda estava espantado em como uma magia tão poderosa poderia ser tão simples, tanto no feitiço quanto na composição. Audus provavelmente nem notará que Julian usara aqueles poucos ingredientes.
Depois de algum tempo no preparo do elixir em que banharia a chave_pegara uma chave velha qualquer que ninguém sentira falta_ Julian estava próximo do final. Só precisava conjurar à natureza que lhe abrisse uma exceção no controle universal que exercia sobre todos os seres vivos e fechasse os olhos toda vez em que ele usasse seu portal. Isso era uma coisa complicada de se fazer sozinho, pois era preciso extrair energia dos pontos centrais de seu corpo ao mesmo tempo em que adicionava os ingredientes catalisadores. Mas ele estava indo bem e estava quase concluído o feitiço.
_A primeira coisa que vou fazer é sair deste lugar infernal, pensou Julian.
Uma explosão extremamente forte ecoou na biblioteca. Julian foi empurrado violentamente para a mesa. Tonto, ele pode ver o pequeno caldeirão que o mestre Audus lhe incumbira de cuidar voando e ricocheteando nas paredes como um animal enjaulado. O caldeirão tinha uma força descomunal e derrubava o reboco das paredes em que batia. Julian só pôde pensar em se esconder embaixo da mesa e esperar que aquela força estranha se esvaziasse. O caldeirão batia insanamente nas paredes. Bateu numa das prateleiras que começou a ceder vagarosamente. Julian tremeu quando viu a bola de cristal Arnun rolar tranqüila, mas inexoravelmente pela prateleira rumo ao chão de pedra.
Pela ampulheta de Kiar!!! A poção do mestre ir pelos ares será a menor das minhas preocupações comparado ao que me acontecerá se essa bola quebrar, pensou Julian.
Ele estava longe, mas num ato instintivo, projetou sua força mental e tentou aparar a bola antes que se espatifasse no chão. A bola flutuou vacilante alguns metros, chegou a quase roçar o chão até se erguer alguns centimetros. Não obstante a força mental de Julian estava muito fraca devido ao feitiço que fizera e a bola começou a dançar desorientada pelo ar antes de cair diretamente no caldeirão em que Julian preparava a poção da chave dimensional de Esther.
Quando a bola lentamente caiu no caldeirão, Julian prendeu a respiração.
O que poderá acontecer se numa magia tão poderosa entrar um componente estranho? E logo mais uma bola de cristal Arnun?!?
Houve um flash de luz negra que avançou num circulo pela biblioteca, depois pela casa e por fim se alastrou pela floresta e depois pelo reino, engolindo tudo rápida e silenciosamente, como um eclipse instantâneo não só de luz, mas vida, energias, até leis fisicas e tudo o mais que encontrasse. É claro, Julian não soube disso, porque não houve mais sons, nem sensações. Nem Julian. Nem nada.
Havia uma luz forte e branca que ofuscava os olhos de Julian. Depois de algum tempo _ quanto? _ seus olhos se acostumaram e ele começou a enxergar. Havia desmaiado? Estava com uma desagradável ânsia de vômito. Tudo estava rodando.
Sua visão começou a voltar, mas Julian não acreditou nisso nos primeiros momentos. Tudo estava tão diferente, não poderia estar vendo bem.
Era um lugar muito branco e brilhante. Tudo refletia, Julian se via refletido no chão quadriculado de branco, nas paredes. Havia muitas luzes, mas nunca vira nada igual, eram luzes frias e constantes, como se não viessem de nenhum tipo de fogo ou chama.
Havia uma enorme mesa inclinada cheia de pontos redondos que brilhavam em várias cores. E um enorme retângulo na parte superior em que se via, como se fosse uma janela estrelas, planetas e várias outras coisas que não sabia definir.
Repentinamente uma parte da parede se abriu num som agudo. Um homem familiar entrou, parou perto de um pedestal quando uma voz alta e metálica, vinda de lugar nenhum gritou, arrepiando todos os cabelos de Julian, ainda zonzo.
“Área de segurança. Identifique-se, por favor.”
_Engenheiro Chefe Audus Nuthighan.
“Identidade confirmada Bom dia Sr. Nuthighan.”
O Homem, extremamente forte e altivo para a idade que seus olhos aparentavam disse para Julian.
_Estagiário Julian Donavan. Sabes que infligires uma grave norma interna do laboratório de estudos avançados quando dormiu em seu posto?
_Hâa... Senhor?!? Disse Julian sem entender nada.
_Exatamente. Não pense que vai escapar de responder por isso. Mas por enquanto, como vão os cálculos avançados que te pedi que projetasse na matriz do computador? Não venha me dizer que nem isso você fez!

Um comentário:

de Dai para Isie disse...

Hahaha!

Parabéns, Vail! O texto realmente prendeu minha atenção. Instigou-me bastante no momento em que Julian se envolveu em suas ideias, esquecendo-se de sua tarefa. Confesso que o final foi mesmo surpreendente. Devem ser assim os sonhos de todos que viajam com paixão na literatura fantástica.

Grande abraço!