terça-feira, 12 de outubro de 2010

A dançarina.

O general estava refestelado no trono. Ainda sujo e suado da batalha, com seu rosto e roupas tomados de um sangue velho e escuro que enchia, assim como os outros soldados, o salão com um cheiro acre e pestilento.
Pelas enormes janelas daquela torre se podia ver o clarão e as colunas de fumaça do incêndio que ia corroendo a cidade. O enorme salão de mármore branco estava repleto de soldados. Eles bebiam, comiam e se divertiam à custa do reino que acabavam de tomar.

Os músicos, que continuavam intocados apenas para este fim, tocavam uma música alegre e dançante que contrastava com suas feições apavoradas. Alguns soldados dançavam alegres ao ritmo da música com o corpo sem vida do antigo rei como se aquilo fosse apenas um boneco de circo. As mesas estavam tomadas por pilhas de comida que eles comiam ruidosamente como porcos.
_Tragam-nas!!! _ disse o general.
A enorme porta do salão se abriu e alguns soldados entraram arrastando várias mulheres. A matilha de soldados instintivamente se agrupou e se espremeu ao redor do salão, deixando o centro livre para a passagem delas.
Eram cerca de vinte mulheres, foram coletaram pelas ruas e também no próprio castelo justamente para essa ocasião.
_Desculpem os meus soldados, disse o general, eles não viam mulheres bonitas como vocês há muito tempo, se bem que eles nunca tiveram modos _ concluiu às gargalhadas, nos seus dentes ainda havia restos da carne da qual se banqueteava.
_ Pedi que as vestissem como as mulheres da minha terra, _ continuou _ não como as mais castas na verdade. Mas para que divirtam nossos soldados não precisarão de castidade. Pedi também que as ensinassem a dançar. Se me agradarem, posso até poupar algumas e tomá-las como presentes para mim. E se a alguma faltar entusiasmo para a comemoração, é só olhar pela janela e se lembrar: o que eu não quero, queimo.
_Toquem! _ gritou aos músicos. _ Vamos ver o que elas conseguiram aprender.
A música recomeçou. O ritmo era alegre e festivo, mas nenhuma das mulheres se mexeu. Seus rostos estavam aterrorizados e aflitos, algumas estavam tão apavoradas que não paravam de soluçar e chorar.
Depois de alguns momentos sem que nenhuma das cativas mexesse um músculo, o General, irado, gritou, fazendo parar a música:
_ Era de se esperar dessas inúteis que não aprendessem nada mesmo. Soldados, façam o que quiserem delas.
Quase ao mesmo tempo em que o General terminou de falar o circulo de soldados que rodeava o salão foi se fechando ao redor das mulheres que enfim libertaram o choro, sofrido e desesperado. Os olhos deles todos denunciavam morte e violação.
Uma das mulheres, vestida com lenços e véus pretos se adiantou à frente. Num movimento lento ela colocou os braços para cima e uma perna à frente, tocando de leve a ponta dos dedos do pé no mármore. Ao ver isso o general soltou uma enorme gargalhada.
_ Ora!!! Se não é a princesa em pessoa que resolveu se salvar. Sabia que em todo esse reino haveria pelo menos uma mulher de verdade _ disse enquanto se sentava no trono. _ Alguém ai esconda o corpo do pai dela para não a distrair. Músicos, façam valer sua vida. Toquem!
A música recomeçou enquanto o corpo do rei era atirado pela janela.
A mulher permaneceu parada alguns momentos, mas quando o general, se sentindo mais uma vez enganado, estava prestes a também defenestrá-la, a princesa começou a descer os braços ondulando. A cada lento vai e vem dos braços, sua cabeça e cintura ondulavam no sentido oposto, acompanhando a música ela começou a oscilar o corpo todo, num ritmo sensual e hipnotizador. No salão fez-se um silêncio quase total, com exceção da música que tocava, embalando o ritmo da dançarina, não se ouviu mais nenhum som, choro das mulheres ou grunhidos dos soldados.
Os olhos do General ficaram também hipnotizados enquanto a dançarina rodopiava pelo salão. Como num jogo ela descobria e voltava a cobrir seu corpo. Misturando o mais que podia o pouco que aprendera daquela dança estranha com as que conhecia. Mostrando, mas nunca completamente suas pernas, ventre, seios... de forma aparentemente casual, enquanto rodopiava os véus no ar, enquanto os tirava e os descartava no chão, ou para os soldados, que se golpeavam violentamente pela posse de um deles, ou para o general.
Quando a música acabou houve muito tempo de silêncio até que os soldados e o próprio general explodissem em palmas e gritos de aprovação e delirio.
O general, não podendo esconder a cobiça e excitação, limpou a boca na manga da camisa e gritou:
_ Há!!! Parabéns !!! Que diferença um sangue azul não faz, hein! Soldados, já tenho a minha preferida. Façam o que quiserem com o restante delas.
Os soldados, avidamente se lançaram novamente sobre as mulheres, as agarrando e arrancando-lhes as roupas.
_ Senhor! _ disse a dançarina, solitária no meio do salão. _ Concordo que seja tua, mas tenho um favor para pedir como condição.
_ Esperem!!! _ esbravejou o general. _ Ainda não!!! Parem! Parem ai mesmo!
_ Princesa, _ falou debochado, mesmo cínico _ não preciso que concorde ou discorde do que quer que seja.
_ Eu prefiro a morte então, disse a mulher.
_ Se não reparou ainda, princesa, o monopólio da vida e morte também são meus agora. Serás minha quer queira ou não.
_ Então de hoje em diante sua vida vai ser um inferno enquanto tenta evitar que eu me mate ou que eu mate a você se descuidar um só momento.
O general ficou em silêncio pesando as implicações de uma ameaça daquele tipo. O que aquela mulher teria a perder para que não cumprisse com qualquer das partes de sua ameaça? E ele precisava tê-la. Ardentemente precisava possuí-la, mas por outro lado a perspectiva de ser morto durante o sono logo após a isso seria uma preocupação constante.
_ Bom... _ disse num raro momento diplomático _ ... como prêmio a você, que conseguiu fazer me relembrar das coisas boas da minha terra, ouvirei o que tem a falar.
_ Liberte estas mulheres e seus filhos. Deixe-as ir, por favor. Deixe-as sair deste reino perdido que prometo que terá meu corpo inteiramente, completamente, sempre que quiser.
Os soldados quando ouviram isso começaram a murmurar e esbravejar. Um deles ainda disse:
_ Senhor, não dê ouvidos a essa mulher! Apenas a possua, são todas suas. Todas elas.
_Como ousa me dizer o que fazer? _ gritou o general com tanta raiva que a princesa sentiu o cuspe que era lançado da boca dele mesmo do meio do salão, institivamente, prendeu a respiração, para também não sentir seu hálito. _ Levem esse patife para fora e arranquem-lhe a cabeça à marretadas!
O pensamento daquela mulher bonita e jovem se dando a ele sem reservas logo apaziguou a ira do general.
_ Está bem! Você aí! _ apontou a um dos músicos. _ Escoltará essas mulheres e seus filhos até fora desse reino. Agora!
O músico correu e pegando pelos braços quase que arrastou algumas das mulheres que estavam apavoradas demais para andarem sozinhas.
_ E quanto a você... _ apontou a dançarina _... quero que esteja pronta no quarto para comemorar junto comigo a minha primeira noite no meu novo reino.
_ Como queira, senhor, disse enquanto fazia uma mesura ao general.
À noite a luz dos incêndios persistentes na cidade fazia com que o quarto se iluminasse quase como se fosse dia. No beiral da janela do quarto a princesa, provavelmente futura rainha, ou concubina, sentia o rosto quente devido ao calor que, mesmo distante, provinha das chamas. Ela tentava tomar coragem.
Quando a porta do quarto se abriu e nele entrou a figura repulsiva do general até o cheiro do ar pareceu podre.
_ Mulher, chegou a hora de cumprir sua promessa comigo. Como disse seu corpo é todo meu agora.
A princesa, com um sorriso de alivio e satisfação, disse:
_ É verdade, foi o que te prometi.... o meu corpo, e riu. _ Mas você terá que buscá-lo lá embaixo.
E se atirou da janela da torre.
Alguns anos depois, o filho de uma das mulheres que haviam sido libertadas naquele dia retornou ao castelo. Ele era o rei por direito, já que a rainha, umas cativas libertadas naquele dia, o havia levado até uma terra segura e distante onde o criado para esse dia.
Ele soube desde criança como sua irmã havia feito para os salvarem da morte certa e, foi com um sorriso nos lábios, que pendurou a cabeça do já velho general numa lança no alto da torre do castelo assim que o tomou de volta

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