sábado, 16 de outubro de 2010

Possessão

O grito estridente e maquiavélico ecoava dentro da casa. Uma gargalhada profunda, entrecortada, esganiçada, que parecia vir de todos os lugares. Era um som doente, como se ela engasga-se com sua própria saliva ou sua garganta estivesse cheia de feridas.
Emerson procura, os olhos esbugalhados, forçando a visão no escuro, a origem daquilo, mesmo sabendo que não queria encontrar.


_Filho da puta medroso! Abra essa porta! _ a casa toda parecia tremer, os moveis balançavam, alguns pratos caiam.
A cada grito daquela voz diabólica Emerson sentia um calafrio, um relâmpago nascendo nas entranhas e se espalhando pelo seu corpo como um choque violento. Seu estomago contraia, havia a ânsia de vomitar, enquanto sua cabeça parecia que ia explodir a cada batida de seu coração.
_Vai Embora! Por favor! Agora! Me deixa em paz! _  Emerson tentou calcular seu tom de voz a fim de imprimir o máximo de autoridade, mas se perguntava o quanto de seu desespero poderia transparecer.
_Háaaa...Há...Há... _ A única resposta que Emerson obteve foi essa. Uma gargalhada tão tenebrosa que parecia que uma brecha direto do inferno se abrisse para engoli-lo.
Saber que aquela voz, tão inumana, tão disforme, ainda reservava algo conhecido, intimo, era aterrador. Emerson se perguntava se teria coragem de descer o martelo com toda a força na cabeça de Isabelle. Naquele momento todo o amor que sentiu por ela desapareceu numa nuvem de pó antigo, que descia das telhas que vibravam, até nada ter restado dele. Ou talvez ele ainda amasse Isabelle, mas o que havia dela naquele corpo destroçado?
Esta história deveria ter um começo, que poderia bem ser este, mas seria uma história muito curta. Então, quando a mente de Emerson busca em seus pensamentos uma razão, um motivo, e tenta voltar até o primeiro momento, o primeiro instante em que deveria ter percebido algo diferente, o momento em que deveria ter agido... o acompanhamos. Para nos deliciarmos mais plenamente de seu desespero. Eu gosto disso.
Poucas semanas serão necessárias regredirmos. Até um momento em que Emerson vê novamente o rosto de Isabele, como ele deveria ser.
Ela o observava lixar um móvel, assoprar o pó de madeira e estudar o reflexo da luz nele. Um criado mudo que ele mesmo fabricara. Achava esse um ótimo hobby, e melhor ainda, conseguia, ás vezes algum dinheiro fazendo móveis pequenos para conhecidos ou parentes. É claro, às vezes sentia tanta satisfação fazendo isso, um móvel único, não personalizado, mas idealizado, que sentia vontade de ficar com o móvel para ele, e chegou a ficar com alguns mesmo. Pedia desculpas para a pessoa que o havia encomendado, prometia fazê-lo (novamente) o mais breve possível, e prometia também a si mesmo tentar não caprichar muito, não por maldade, só não queria outro criado-mudo.
Isabelle o observava com o olhos estranhamente opacos, olheiras escuras e a pele de uma cor amarela bem esquisita.
_Está se sentindo bem, amor? Está gripada?
_Ahn... Não... Acho que não. Eu dormi mal. Tive um sonho horrível. Não, foi um pesadelo, foi horrível.
_Que estranho, Isabelle! Você nunca reclamou disso antes. Aliás, eu nem sabia que você sonhava. _ disse, tentando brincar _ Tente dormir um pouco, pode ser aqui mesmo. Deixe-me arrumar a minha cama para você.
_Sabia!...Sempre tentando me levar para a cama, não é ?!... Mas não se preocupe. Não vou dormir. Tenho medo de dormir.
_O que houve, Isabele? Conte para mim...
Isabelle contou seu último sonho para Emerson, disse que não eram repetitivos, que toda noite era um sonho diferente. Ele inicialmente achou que seria mais um sonho ruim qualquer, algo fútil e sem graça, um grito dos hormônios de uma mulher por um homem, como às vezes pode acontecer. Mas conforme Isabelle ia falando, ele sentiu o pelo da nuca arrepiar num arrepio gélido, tanto quanto o suor que escorria-lhe pelas costas.
Horrível. Se não apenas pela história, mas também pela sensações que Isabelle passava. Os olhos esbugalhados e atônitos dela como se estivessem relembrando não apenas um sonho, mas algo que realmente acontecera. A posição de sua mão quando descrevia a faca que empunhava. O movimento forte e repetitivo como se mutilasse o corpo de alguém. Enquanto ela falava, saliva se acumulava nos cantos de sua boca tamanha era a velocidade com que as palavras, sem pausa, saiam dela. O movimento de seus dedos, quando descreveu ter as mãos empapadas de um sangue viscoso e pegajoso.
Emerson tentou esconder o quanto ficou impressionado, não ajudaria nada se ela percebesse que ele também achara aquilo horrível e não uma bobagem qualquer. E a acalmou da melhor maneira que pode.
Mas aquilo foi se repetindo. Toda manhã, às vezes o sol nem aparecia completamente e ela já vinha à sua porta, apressada, contar o sonho que tivera na noite que acabara de terminar. Eram tenebrosos. Emerson se pegara várias vezes fazendo uma força indescritível para focar em outra coisa, um móvel, uma programa de televisão, só para tirar da mente as imagens vívidas que Isabelle implantara em sua mente. Um dia quase chegou a dizer pra ela:
_Não durma mais. Apenas não durma que esses sonhos não vão mais acontecer! _ coisa que percebeu ser impossível e desesperada antes mesmo de falar, e se conteve.
_Vamos pra minha casa. _ disse Isabelle neste dia _ A gente assiste a um filme. Não me deixe sozinha hoje.
Emerson tentou pensar em uma boa desculpa para não ir.
_Juntos ... Mesmo!!!_ frisou Isabelle quando sentiu a indecisão dele. E funcionou.
A casa de Isabele ficava num lugar afastado. Entre uma linha férrea e uma mata sobrevivente. A casa era antiga e muito pequena, claustrofóbica.
O filme que assisitiram poderia ser qualquer um, afinal, Emerson nem reparou muito nele e fingiu estar com sono antes da hora só para ir para cama.
Apesar de Isabelle quase chorar para ficarem mais tempo acordados, foram dormir. Eles fizeram amor por muito tempo. Fora a primeira vez deles e depois disso Isabelle dormiu como se não dormisse a um bom tempo.
Já madrugada, Emerson foi ao banheiro e, quando voltou, já com a luz acesa, viu no corpo nu de Isabelle marcas roxas, vermelhas, hematomas de vários tipos e cortes na pele. Ele se aproximou e, vendo mais de perto, eles eram piores do que pareciam.
_Mas com que tipo de louca eu estou lidando? _ disse ele, sabendo que ela não iria escutar. _ Amanhã preciso falar sério com ela! Vai procurar um médico, um psiquiatra!
Emerson foi dormir preocupado ao lado de Isabelle, as imagens dos sonhos dela agora estavam vivas na sua mente também.
Eram umas três horas da manhã quando Emerson acordou novamente. Isabelle não estava na cama. A procurou em toda a casa, mas ela não estava ali.
Ouviu algo lá fora. Seria ela? Procurou suas roupas. Não podia ir para fora assim. Onde estão esses malditos sapatos? Olhou embaixo da cama. Havia, além dos sapatos, algo estranho lá. Um embrulho, um enorme monte sujo e mal amarrado. Emerson o puxou e quando o abriu, caiu para trás assustado e começou a vomitar quase que imediatamente. Havia no saco roupas, todas sujas de sangue e rasgadas, havia facas, martelo, a parte metálica de uma foice,tudo num enorme monte vermelho de sangue e germes, que exalavam um cheiro que...que não deveria existir. Outro som lá fora. Foi um grito? Segurando a ânsia, pegou o martelo e correu para fora. A escuridão parecia uma parede sólida, só sabia que não estava flutuando num limbo de trevas porque sentia seus pés esmagarem as pedras enquanto seguia os gritos de uma criança sobreposto por uma risada doentia.
Quando chegou perto o suficiente o que viu o deixou perplexo. Isabelle, o corpo contorcido, como uma fera que arquejava, tinha seus olhos vermelhos e saliva escorria de sua boca em grande profusão. Ela arrastava, segurando pelos pés, uma criança que deixava com as mãos um rastro na terra e algumas unhas enquanto gritava e esperneava.
_Isabelle!!! Gritou .
A criatura, surpreendida talvez, mirou seus olhos vermelhos na direção dele enquanto afrouxava a mão que carregava a criança. Quando a criança conseguiu se libertar e, rapidamente sumiu na escuridão, a criatura, refeita, vociferou:
_Verme!!! Volte aqui, verme!! _ gritava a besta enquanto vasculhava a escuridão, mas quando percebeu que a criança não retornaria, virou-se para Emerson, que ainda estava petrificado:
_Idiota!!! Só precisava de mais um sacrifício!!! Só mais um!!! _ e mostrando os dentes num sorriso bestial, grunhiu _ Por outro lado, sangue é sangue. PODE SER O SEU!!!
Emerson conseguiu sair da paralisia e correu o mais que pode para a casa de Isabelle, que infelizmente, deveria conhecer melhor que ele. Logo quando entrou fechou a porta e houve um enorme barulho, como se um carro houve se chocado contra a porta da frente. Fechou as janelas também. E depois apenas silêncio.
Até que um grito estridente e maquiavélico ecoou dentro da casa... Dentro!...
Neste ponto a história já é conhecida, não obstante não poderia retomar daí. Isto deixaria a história longa demais. Vou passar deste ponto em que Emerson está aparentemente indefeso, como um cordeiro ante o chacal, e vou para um momento a seguir. Um ponto em que sinto um prazer... especial.
Atrás de Emerson pode-se ver que a pequena casa está destroçada. Um enorme buraco no teto, de onde sai uma fumaça cinza, denuncia a destruição que haveria lá dentro.
Ele está agachado, as mãos suspensas para evitar o sangue que toma todo o seu corpo. Uma repulsa involuntária.
De frente para ele está quem costumava ser Isabelle. Amarrada nos trilhos do trem. Emerson está ali, velando a futura morta para se certificar que isso ocorrerá. A mulher engasga com seu próprio sangue. Toda vez que tenta respirar mais profundamente bolhas vermelhas brotam de um buraco no seu peito e a tosse joga alto um spray de sangue quente. O trem está quase chegando. Está quase na hora.
_Viado maldito!!! Me solte !!!
Emerson passara as últimas duas horas nesta posição. De inicio quase se pegara cedendo às suplicas do demônio quando, em desespero, fingia ser Isabelle, lhe dizendo palavras de amor e suplicando perdão. Só para, quando percebia que não estava enganando, voltar a vociferar injurias e palavrões, o que de certa forma até tranqüilizava Emerson. Afinal, isso deixava mais claro que não restava nada de Isabelle ali.
O trem foi pontual. Às 06:03 apareceu no horizonte. O demônio ainda estava vivo.
_Cretino miserável!!! A criança fugiu! Ela era especial! _ Emerson se levantou e se afastou, quando percebeu a vibração do trem chegando perto.
_Sim! A criança fugiu! E por Deus... Você pagará pelo que fez com Isabelle! Vá para o inferno, besta!
A criatura olhou para o trem que se aproximava e soltou uma gargalhada feroz.
_Criatura inútil! Não haverá o sacrifício da criança! Mas haverá um sacrifício!
_O que você está dizendo? Só você vai morrer aqui hoje, demônio asqueroso!
_É isso mesmo! EU!!! Serei o sacrifico!!! É uma honra! E quando este corpo for despedaçado meu mestre tomara o corpo da alma vivente mais próxima! Seu idiota!!! Corra! Vamos Corra!!!
E riu , a criatura riu e sua risada ecoou! Ela olhava para o trem a poucos metros se deliciando com cada momento. Até que o trem às 06:05 passou por sobre o corpo daquela que fora Isabelle, me libertando.
Emerson esta a pouquíssimos metros dali. É incrível a fragilidade do ser humano, ele só conseguiu correr vinte passos depois que percebeu o quanto estava ferrado! E foi nesse ponto que eu tomei seu corpo. Meu corpo.
Hoje, o Emerson é só uma voz que às vezes ecoa na minha cabeça e que passa com um DORIL ou um drink. É hilariante ver como chora feito uma criança, esse mané. E eu fiz uma grande fogueira com aquele monte de moveis idiotas dele

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