sábado, 16 de outubro de 2010

A velha do carvalho

Amanda estava lavando louça. Ela morava numa pequena fazenda e tinha doze anos. A casa de madeira em que morava era bastante grande. A madeira fora retirada dali mesmo, do Bosque dos Carvalhos, o que dava um cheiro todo especial à casa.




O pai quase nunca saía da pequena, mas próspera, fazenda. Entretanto neste dia em especial teve mesmo de sair. A época da colheita se aproximava e ele tinha coisas a resolver na cidade.


Amanda não lembrava da mãe. O pai não gostava de falar dela, ficava bravo. Bateu muito nela na ultima vez que perguntou pela mãe: “- Não quero você falando dela nunca mais, ouviu?”


A imagem das lágrimas escorrendo pelo rosto quente e vermelho, como um pimentão, do pai enquanto ele girava sua cinta no ar ainda era viva em sua lembrança. Também era viva a lembrança da dor que lhe ardeu em finas marcas vermelhas na pele das costas durante vários dias.


O pouco que Amanda soube da mãe ouviu por detrás das portas ou atrás dos muros. Como naquele dia antes de ela completar dez anos, numa ocasião em que Tia Clara, irmã mais velha de seu pai, os visitava:


- ...ela já está para fazer anos de novo, Ben, vai fazer dez. Como florescem rápido nossos filhos, não é? Se for verdade a história que contam por ai Benjamim, já deve ser hora de resguardar Amanda. Mande-a para viver comigo.


- Não acredito que tenha verdade nestas histórias de maldição, Amanda está fora disso.


- Você quer esperar até que aconteça também a Amanda o que houve com a mãe dela? Ouvi falar que ela encontrou a Voz antes da idade de Amanda. Dizem que isso aconteceu com toda a família dela. Isso é verdade?


- Você sabe que é invenção da família de Eleanor, aquele bando de simplórios supersticiosos. Não me aborreça e não fale disso novamente. Se alguém do Bispo a ouve falar o nome de Eleanor ou no que ela se tornou, será punida. Você sabe qual é o castigo que os contadores de histórias receberam, não sabe?


Eleanor, assim conheceu o nome da sua mãe. Foi a primeira vez que ouvira e também a última. Nunca soube nada dela nem tampouco encontrou nenhum parente do lado materno para perguntar algo.


Amanda freqüentava a escola de ofícios de manhã, onde aprendia a tecer, esta seria sua profissão para o resto da vida. Ela não sentia entusiasmo nisso.


Lavou a louça e começou a fazer comida para que houvesse algo quente para o pai quando chegasse.


Ela pôs a cabeça na janela quando ouviu uma voz chamando de fora e viu que uma senhora, bem idosa e maltrapilha que chamava. Lembrou-se de que seu pai a proibira de abrir a porta para estranhos e de falar com algum quando estivesse sozinha. Ela pensou que a velhinha era inofensiva e parecia ter fome e sede. Não haveria mal algum em ajudá-la. Separou um pouco de comida e um pouco do leite que sobrara do café da manhã.


Quando estendeu o embrulho à velhinha sentiu um calafrio desagradável ao ver na sua boca os restos enegrecidos dos dentes e outros tantos espaços vazio.


Mas ainda assim o sorriso da mulher era caloroso e sincero.


- Obrigado criança - disse a anciã- que o grande Deus de sua casa abençoe a bondade que me fazes e que nunca venha a precisar de favor igual.


Amanda apenas sorriu e voltou para dentro da casa alegre, mas rapidamente.


Não contaria ao pai o que fizera, não por ser algo ruim, sabia que não era, mas por que ele com certeza brigaria por ela ter falado com a senhora estranha na ausência dele.


Amanda ia para a escola caminhando pelo Bosque dos Carvalhos. Ela saía logo de manhã e gostava de observar como, conforme o sol ia subindo no céu, as sombras das árvores, diminuíam no chão. Gostava de ver como a luz do sol desenhava cortinas bordadas das mais finas e leves quando vazava pelas folhas das árvores e irradiava na tênue neblina. Um dia Amanda encontrou a senhora a quem dera comida sentada ao pé de um carvalho enorme no bosque. Nos primeiros dias não falou com a mulher, a observava de longe.


A velha usava um vestido que parecia mais um enorme trapo de várias cores, seu cabelo era tão branco que parecia jamais ter tido outra cor. Sua pele era tão enrugada que parecia terra seca trincada pelo sol.


Ela não tinha muitas coisas. Tudo que tinha cabia numa pequena carroça que seu burrinho que pastava ao longe puxava talvez sem grande esforço. Havia também um gato preto de olhos dourados e um pequeno baú.


Às vezes a velha cozinhava num pequeno caldeirão enegrecido pela fuligem numa fogueira que ficava num circulo de pedras, noutras ocasiões ficava parada, aninhada numa das grossas raízes do carvalho olhando fixamente o nada.


Amanda habituara-se a naquelas semanas sempre observar por algum tempo a anciã moradora do Bosque dos Carvalhos. Num dia, porém, surpreendera-se quando, ao espreitar, não encontrou a onde costumava estar.


Com todas as coisas dela ali, a velha apenas deveria ter ido dar uma volta. E apesar de saber que ela não tardaria Amanda resolveu olhar de perto o refugio montado aos pés do carvalho.


O pequeno caldeirão cozinhava um ensopado de legumes e carne de coelho. Da fresta da tampa subia uma fumaça suave com cheiro de ervas, alecrim e manjericão. Amanda cheirou o vapor e imaginou como era possível cozinhar algo tão bom em tão precárias condições. Ela pegou um pouco de manjericão que estava numa mesinha improvisada perto do fogo e colocou um pouco no caldeirão.


A maneira como a colcha de retalhos que a mulher usava para dormir estava estendida no chão era curiosa. Sobre uma grossa camada de folhas secas e entre duas fortes e grossas raízes e com a enorme árvore na cabeceira a cama da velha parecia um leito digno dos mais nobres.


Nas duas ramificações da raiz que passava ao largo da cama improvisada, a velha equilibrou pequenos objetos, que Amanda observou cuidadosamente, tomando o máximo cuidado para deixá-los na posição em que os encontrou.


Havia um pequeno e ornamentado baú e viu que dentro havia vários embrulhos. Achou que eram caixinhas, mas não eram. Pegou um deles, abriu e viu que tinha uma capa de couro e folhas de papel. Havia figuras em algumas das folhas e nas outras coisas que pareciam números, mas não eram.


- Parece que gostaste do meu livro - disse a velha que apareceu como por encanto ao lado de Amanda.


- Desculpe, por favor... Eu não ia pegar nada das suas coisas, juro! - disse gaguejando e assustada.


- Oh, não tem nada, menina.


- Me perdoe, eu sei que não devia estar aqui nem xeretando suas coisas.


- E ontem? E antes de ontem? E durante a semana passada inteira? Também não deverias estar aqui nestes dias? - disse a senhora rindo - Venho te observando a observar-me e tenho aguardado com ansiedade a ocasião em que viria falar comigo.


- É que meu pai não gosta que fale com estranhos.


- Há muito tempo me observas e me acompanhas de longe. Lembro-me igualmente da ocasião em que me destes, com gesto de grande generosidade em tempos tão difíceis, aquele prato de comida e o leite. Como podes considerar-se ainda uma estranha a mim ou eu uma estranha a você? Tomará do guisado de coelho que ajudou a temperar?


- Não obrigado. Tenho pressa em voltar para casa, meu pai me espera.


- Como disse, vejo que gostaste do meu livro - disse a velha estendendo-lhe um prato fumegante - Sabes ler?


- O que é isso?


- Vejo que não sabes e isso é um livro, criança. Um bem antigo, mas que nunca canso de ler por que sempre tem histórias novas que eu mesma faço.


- E pra que serve?


A velha pensou alguns instantes e riu, mostrando seus dentes ausentes e outros tantos podres:


- Me pegaste agora. É algo tão simples, mas tão difícil de explicar. Deve ser porque me é tão natural.


Amanda olhou a velha de uma maneira que não precisou falar a pergunta.


- Sentes o cheiro do ar que respira? Decerto que não. Mas já sentiste, quando o ar lhe era novidade sentiras seu sabor. Assim acontece-me agora, como falar de maneira simples de algo que me é tão comum como respirar? Disse a velha oferecendo um prato.


A aparência da mulher alertara a prudência de Amanda a não comer daquele guisado, mas o cheiro era bom e doce e ela viu que não precisava recusar.


- Mas o que são essas coisas esquisitas? Que tipo de números são estes? Nunca os vi.


- Isto são letras. É diferente dos números que lhe ensinam na escola. Tenho pena de vocês crianças que não aprendem mais a ler palavras.


- Como podem ser estas coisas palavras?


- Sim palavras, juntas formam frases e quando houver mais ainda, pensamentos.


Amanda não conseguia entender, aquilo era impossível. Na escola de ofícios lhe ensinavam os números e sua profissão de tecelã. Disseram que isso era tudo que havia de importante. Como poderia haver sons e palavras ali naquelas folhas, além, é claro, dos sons dos números?


Amanda virou o livro em várias posições, mas não conseguiu uma forma de decifrá-lo. A velha achou graça e disse.


- Querida, ler é uns dos maiores dons que podes conseguir em sua existência. Podes ter várias vidas no espaço de tempo de sua vida, eu, por exemplo, sou muito, mas muito mais velha do que o muito que já aparento, pois já vi, vivi e acompanhei muitas vidas diferentes da minha própria. E foram muitas.


A mulher colocou mais algumas ervas no caldeirão e vendo o interesse da menina, continuou:


- Poderás também, criança, viajar para lugares distantes e fantásticos mesmo estando aqui, no Bosque dos Carvalhos. Podes ainda amar louca e apaixonadamente e provar do beijo e provar dos abraços mesmo ainda pura e casta como és; virgem.


Ficaram em silêncio a menina e a velha durante muito tempo. A velha cozinhava. Depois de mais tempo ainda Amanda perguntou.


- Senhora, como aprendo isso a que chama de “ler”?


- Terás coragem?


- Sim.


- Então proponho algo, se me quiseres ouvir- disse olhando-a de soslaio, obliquamente como uma velha gata dissimulada, para a menina que mantinha o livro aberto na mão.


Amanda ainda estava tentando compreender o que a mulher dissera. Como seria possível conter tudo aquilo naquele livro? Seria ela era uma bruxa ou simplesmente uma louca?


-Te ensino a ler - continuou a velha- que implica te ensinar a escrever necessariamente, se tu trouxeres para mim comida, pois já não tenho forças ou saúde, como podes ver, para conseguir sozinha tudo do que preciso.


A velha tirou a tampa do pequeno caldeirão de onde subiu uma coluna rodopiante de vapor, pegou uma colher e provou, com muito barulho, como uma criança tomando sopa.


- Ler, é isso te ofereço - falava a velha rápido enquanto andava de um lado para o outro _ Darei não só a visão desta terra que vegeta com força, mas também a de outras em que o frio cobre de branco toda a terra e a mata e o mar com a neve branca e macia como a clara do ovo que você bate até espumar.


Enquanto falava olhava com o canto dos olhos para ver a reação da criança. A fitava nos olhos bem fundo, e soube que podia continuar a tentá-la.


Pegou mais algumas folhas, picou-as com os dedos calejados e jogou na panela a erva. Provou do aroma que este emprestara a comida. Seus olhos se fixaram num ponto vago e seguiram a coluna de vapor que subia pela copa do carvalho para depois escorrer para cima por entre as folhas e galhos. Depois, pelas brechas da ramagem, a velha, com seus olhos opacos, contemplou o céu angustiosamente azul e continuou a falar.


- Esse mundo e muitos outros mais. As estrelas e o sol, verás não só o momento em que nascem, mas presenciará suas mortes.


- Desculpe, Senhora, não entendo o que oferece. Algo assim não existe, se existisse decerto já saberia ou teria ouvido falar, pois já tenho idade para saber das coisas. Ou ainda qualquer outra pessoa das que conheço saberia.


- Dê esse livro, vou mostrar do que falo e entenderás o que digo- e a velha começou a fazer aquilo que ela chamava de “ler” para Amanda.


Amanda, que ainda se sentia insegura ali, na mata com aquela mulher velha e feia, parecendo uma bruxa; que olhava ao redor explorando os objetos exóticos e estranhos da velha; que achava que a mulher louca agora falava sozinha; foi aos poucos perdendo a noção das coisas ao redor.


Não havia mais nada, o vento nos carvalhos do Bosque dos Carvalhos cessou, também os ruídos dos animais e o crepitar do fogo, tudo cessou quando a velha falou numa voz que parecia não ser dela. De repente nem a velha estava ali, nem Amanda. Apenas a voz permanecia.


A voz que desenhava imagens e lugares e sons e bichos e pessoas na mente de Amanda. A voz que falava sobre heróis e dragões, sobre amor e espadas, sobre lágrimas e sede, sobre vida e morte.


Amanda passou a visitar o refugio todos os dias. Ela levava muita coisa que seu pai produzia na pequena fazenda, na maioria das vezes legumes e verduras e ovos. Os levava de manhã, e na volta da escola sentava numa das raízes da árvore enquanto a velha os preparava para depois pacientemente, lhe ensinar a ler e escrever. Uma letra por vez, um som por vez.


Um dia Amanda percebeu que chamava a velha apenas assim, de velha.


- Qual é o seu nome, senhora?


- Meu nome? Faz tempo que não o digo a ninguém. Se houvesse perguntado como me chamam ou como me chamo, diria: “Me chamam de velha simplesmente, pois já sou velha há muito tempo, mas há aqueles que me chamam de Voz”. Mas como perguntou pelo meu nome digo que descobri infelizmente que o esqueci há muito tempo. Por tanto tempo que passei a escondê-lo, e escondi tão bem, que também o acabei perdendo.


- A chamam de Voz?


- Sim, tem algo a ver com ser uma contadora de histórias.


- Você conheceu a minha mãe? Eleanor?


- Eleanor? Ah sim. Conheci realmente, e neste mesmo Bosque dos Carvalhos a ensinei a ler, como fiz contigo. Mas depois, nunca mais a vi.


- Então não sabe o que houve com ela?


- Ela como você, aprendeu a ler, mas se tornou como eu. Ser uma contadora de histórias é uma benção que se recebe, mas pode ser uma maldição quando não há ninguém para ouvir o que temos para contar. Mas não foi isso que ocorreu_ continuou a mulher. _ Um dia, depois que já lhe havia ensinado tudo que sabia, ela apareceu aqui, neste mesmo carvalho e me pediu para ir embora imediatamente, fugir, pois viriam atrás de mim. É só o que sei.


Os dias foram se seguindo, Amanda era inteligente e aprendia rápido. O pai não notava sua ausência naquelas tardes, a fazenda estava em época de colheita do milho e da tosa das ovelhas preparando-as para o verão.


De letra em letra em poucas semanas Amanda construiu palavras e delas frases curtas e gaguejadas. Ela usava para escrever os blocos de contas matemáticas que usava nas aulas de oficio, a coisa mais parecida com um caderno que pôde conseguir.


Depois de algum tempo a velha emprestou-lhe livros para que levasse para casa, mas com a condição de não mostra-los a ninguém.


Amanda levou um livro para casa, depois outro e mais outros, sempre mantendo o maior cuidado para que o pai não os visse. Lia durante as madrugadas, no celeiro à luz de uma lamparina, no sótão só quando a vontade era muita e o pai não estava perto.


Certo dia a velha estava quieta, sentada na raiz do carvalho, rabiscando no chão com uma varinha quando disse:


- Não há mais nada a te ensinar. Já lês bastante bem, quase tão bem quanto eu. Em breve não precisarás mais de mim.


- A senhora é bondosa comigo, e malvada consigo dizendo essas coisas.


- Mas é verdade. De qualquer forma, o clima aqui já não me é tão propicio. As pessoas do vilarejo estão desconfiadas de minha presença e de minhas motivações e deixaram de ser amistosas.


- Você quer dizer que vai embora?


- Sim, amanhã. Novamente para algum lugar em que não me conheçam. Mas tenho um presente para você antes de ir. Aqui tem um livro especial.


- Obrigado- disse Amanda - mas tem algo errado, as paginas dele estão em branco.


- É porque elas têm de ser assim, brancas. Você já leu todos os livros que tenho comigo. Não há mais nada aqui para você ler. Terás o poder, e o prazer, de escrever seus próprios livros.


- Volte um dia para que eu leia em voz alta para você.


- Não há como prometer. Mas, criança tenha cuidado - continuou a velha. - Você sabe o que aconteceu aos livros e escritores e todos os contadores de histórias não sabe?


- Sim, agora sei. Ouvi meu pai conversando outro dia. Os livros foram queimados e seus escritores executados por ordem da Igreja, assim como os contadores de histórias. Diziam que escrever é um vicio que não cessa, e se é escritor nunca se poderá ser outra coisa. Mas só não sei o porquê aconteceu e nem papai pareceu saber.


- Já faz muito tempo e todos esqueceram o que provocou essa desgraça. Ninguém mais sabe, mas ainda sobrou a perseguição e o silêncio. Só tome cuidado. Criança... vou sentir sua falta.


- Eu também sentirei a sua, minha velha senhora - disse não podendo evitar que descessem lagrimas e virou para o bosque para que a velha não a olhasse no rosto.


Nesse dia Amanda chegou mais tarde do que de costume em casa. Seu pai estava esperando bastante preocupado. Ela se desculpou, subiu para o quarto onde tirou o livro de dentro da blusa e o guardou embaixo do colchão. Em seguida correu ao galinheiro para pegar ovos para a ceia.


Quando voltou, ainda na porta da cozinha, com a cesta de ovos nos braços levou tamanho susto que a deixou cair e quebraram todos os ovos no chão. O pai estava parado no meio da cozinha, o livro aberto em cima da mesa enquanto ele o olhava à distância, aparentemente sem coragem de chegar perto.


- Amanda. O que é isso?


- Pai eu..


- Ingrata! - gritou o pai sem esperar resposta desferindo um tapa no rosto da filha - Você puxou a família da sua mãe, aqueles malditos. Como pude ser tão idiota?


- Pai..


- Deixei que acontecesse com você exatamente o que aconteceu com sua mãe- o homem chorava compulsivamente, andava em círculos. A menina mantinha a cabeça baixa.


- Você pode imaginar como foi difícil para mim, Amanda? Pode? Tive que entregar sua mãe à Inquisição dos livros para garantir que nos deixassem em paz, a mim e a você. E agora isso!!


- O que pai? O que você fez?- Amanda esqueceu do medo e segurou o pai pela manga da camisa- O que você fez à minha mãe?- disse entre os dentes pausadamente.


- Não me olhe assim... Não me olhe assim... - empurrando a filha para longe. - A haviam descoberto. Se eu não tivesse feito isso nossa casa teria sido incendiada com a gente dentro. Oh Deus! Agora vou ter que entregar você também!


- Pai você não precisa fazer isso, não precisa- disse a menina, chorando.


- Onde foi que você encontrou a Voz? Como ela é?- chacoalhou a menina pelos braços, mas vendo que ela não iria dizer jogou-a ao chão_ Suba para seu quarto e fique lá até que te mande descer. A menina pegou o livro da mesa e correu.


Amanda da janela do quarto pode ver a chegada do bispo. Viu também os grupos de caça saindo e à noite pode ver o brilho das tochas se movimentando no Bosque dos Carvalhos. Seu coração se encheu de tristeza e, logo depois, de coragem: Iria avisar a velha!


No caminho precisou se esconder dos caçadores e dos cães de caça. Chegou perto da clareira do refugio no momento em que os caçadores prenderam a velha.


A frágil velha estava com uma corda amarrada às mãos. Ela, cansada, caia no chão e era arrastada pelo possante cavalo, então recebia vários golpes de chutes e porretes. Os cães a mordiam e não paravam de mordê-la em seus calcanhares nem quando, com dificuldade, levantava. A arrastaram para o Bispo e Amanda viu, de longe ainda, quando os caçadores fizeram à velha se ajoelhar aos pés do homem da Igreja.


O Bispo disse alguma coisa a velha, que não lhe respondeu, ele então cuspiu nela e ordenou aos caçadores que a levassem.


Os caçadores gritavam e urravam como se estivessem fazendo algo glorioso. Empurraram então algo asqueroso na boca da velha com o porrete e passaram uma corda ao redor do pescoço dela.


Os caçadores jogaram a corda por cima de um galho e puxavam. O Bispo, tão perto da velha que os pés dela o chutavam involuntariamente na agonia, gritava:


- Poderoso Deus dos homens, reconheça a alma impura desta contadora de histórias por estes ratos mortos putrefatos que ela leva na boca. Não a deixe pisar em teus reinos e expulse-a das portas do paraíso direto ao fogo do inferno quando sentir o cheiro.


Depois do clamor o Bispo pediu aos caçadores que a cobrissem a velha com óleo, mesmo enquanto ainda se movia, e a incendiassem com as tochas.


- Guarde um pouco do óleo - disse o Bispo. Cansei daquela família amaldiçoada da fazenda. Hoje daremos um fim nesta história de perdição de uma vez por todas.


Amanda saiu dali, engatinhando de costas, deixando um rastro de lágrimas.


Decidiu ir embora e não voltar nunca mais. A seu pai não restava esperanças. Não havia tempo de avisá-lo, mas mesmo que tentasse provavelmente ele a entregaria para tentar aplacar o Bispo.


Amanda voltou ao refugio, os pertences da velha ainda estavam todos lá. O gato preto de olhos dourados saiu miando de uma moita quando a viu. Ela pegou o baú e as pequenas coisas e arrumou-os na pequena carroça. Passou o arreio no burrico e saiu do Bosque dos Carvalhos o mais rápido que pôde para qualquer lugar.


Ao longe se via um clarão enorme rompendo a madrugada vindo do lugar onde seria a casa onde morava.


- Vão me procurar durante algum tempo quando não me acharem no quarto, se é que procuraram antes de atear fogo na casa.


Amanda estava longe quando amanheceu. Fazia frio e o gato preto de olhos dourados dormia enrolado ao lado dela enquanto o burrico já puxava sem pressa.


Estava à procura de um lugar onde ninguém a conhecesse e onde os agora seus livros seriam bem-vindos.


Tirou o livro em branco de dentro da blusa e pensou:


"_Preciso ir para o mais longe que puder e viver escondendo meu nome, mas juro por Deus que não vou esquecê-lo."

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